![]() Introdução O meu nome é Mizé Felizardo Manguessa, sou oriundo da Ilha de Idugo, na zona centro de Moçambique, província da Zambézia. Vou contar o meu trajecto como Testemunha de Jeová, desde a entrada até à saída. Peço que não me interpretem mal, visto que não tenho nada contra a organização, mas simplesmente quero contar a verdade e arrancar de mim este peso que prevalece em meu coração por muitos anos. Digo isso porque todo aquele que se afasta da organização é considerado apóstata, anticristo, desassociado, odiado e discriminado pela organização. Esta é uma biografia baseada em factos reais, vividos na primeira pessoa do singular. Não são contos distorcidos com o objetivo de manchar a organização, muito menos enfraquecer os jovens que servem no tempo integral. Trata-se de um alerta às prováveis consequências de aceitar um estudo bíblico ou ingressar no tempo integral das Testemunhas de Jeová. Como me tornei Testemunha de Jeová Lembro-me do primeiro dia em que tive contato com uma Testemunha de Jeová como se fosse hoje. Na inocência da juventude, curioso e ávido em aprender, empolguei-me ao ver um grupo de pessoas bem arrumadas que falavam com as pessoas de casa em casa. Eu estava curioso em saber de que assunto se tratava. Sem demora, um dos integrantes do grupo aproximou-se de mim e falou sobre um evangelho diferente do que eu já tinha ouvido desde a minha mocidade: a “Pregação das Boas Novas do Reino”. Ele leu o livro de Apocalipse 21:3,4 e provou-me que quem faz parte do Reino, em breve, jamais pranteará; todas as lágrimas serão enxugadas, e o sofrimento e a morte não mais existirão. O que eu não sabia era que o simples contacto com aquele grupo me tornaria uma Testemunha de Jeová. Na verdade, eles não dizem qual é o objectivo da pregação. Embora saibam que a intenção é atrair os distraídos espirituais para o seu curral — isto é, transformá-los em Testemunhas de Jeová — usam estratégias sutis de persuasão. Oferecem literatura adequada ao nível intelectual do interessado e combinam horário, dia e local para abordar temas que levam a um estudo bíblico regular, participação nas reuniões, tornar-se publicador não batizado, batizado, estabelecer alvos espirituais e, eventualmente, deixar a sua vida pessoal para se tornar servidor de tempo integral, o auge para uma Testemunha de Jeová. Como qualquer Testemunha de Jeová, segui todos esses passos até servir no Betel, especialmente no RTO (Remote Translation Office), escritórios de tradução ligados ao Betel, mas localizados nas áreas onde a língua traduzida é falada. No entanto, o estilo de vida, a rotina e a alimentação seguem o padrão do Betel. O que me motivou a candidatar-me como betelita? A principal motivação era entregar a minha vida como sacrifício vivo a Deus, visto que as publicações que eu lia mostravam que Betel era a casa de Deus e representava o melhor estilo de vida que se poderia ter. Trabalhar diretamente com a classe ungida de Deus na produção do alimento espiritual no tempo apropriado parecia perfeito. Eu só via perfeição e alegria nesse serviço, por isso fiz todo o esforço possível para me qualificar a servir em Betel. Como me qualifiquei para o serviço de tradução? Por meio de algumas correspondências enviadas pelo Corpo Governante aos anciãos da minha congregação, recebi textos em inglês para traduzir para a língua local (Elomwe). Fiz a tradução conforme solicitado e, no mês seguinte, fui convidado a me tornar tradutor. Entre quatro jovens, fomos os pioneiros e fundadores do RTO (Escritório de Tradução Remota) no distrito de Gurué, província da Zambézia, no ano de 2012. Logo no primeiro dia, minha visão sobre Betel começou a mudar, pois minha designação como tradutor foi alterada, e passei a superintender todas as tarefas do lar de tradução. Eu era responsável por fazer compras, limpeza, lavandaria, passar roupa, cozinhar... tudo sozinho. Era um verdadeiro pesadelo e sacrifício. Em seis meses, já me sentia exausto e sobrecarregado, mas, como a minha motivação era servir a Deus incondicionalmente, permaneci nessa designação por um ano. Durante os primeiros seis meses, não recebi nenhuma ajuda de custo pessoal, embora administrasse valores fornecidos pela organização para compras de alimentação, eletricidade, água, produtos de limpeza e higiene. Foi um teste completo à minha fé, especialmente porque os outros tradutores recebiam ajuda de custo. Apenas no sétimo mês recebi o meu primeiro reembolso mensal, mas sem qualquer compensação pelos seis meses de trabalho anteriores. Ainda assim, fiquei feliz com o reembolso, pois enfrentava muitas dificuldades. Continuei a servir sem reclamar e, após um ano, recebi finalmente a designação oficial como tradutor. Foi então que começou uma nova etapa na minha vida no serviço de tempo integral. A vida no Escritório de Tradução Embora o trabalho no escritório não fosse braçal, era mentalmente desgastante devido às oito horas de expediente exigidas pelo Corpo Governante. Às vezes, trabalhávamos até tarde na noite, sem qualquer reembolso adicional, para atender prazos de revistas atrasadas ou traduzir discursos, simpósios, vídeos e dramas que seriam exibidos em assembleias ou congressos. Além desse trabalho, recebíamos a escala para preparar o café da manhã e participávamos da gravação de vídeos, áudios e dramas que seriam apresentados nessas reuniões. Lazer na Casa de Deus (Betel) A rotina era tão apertada que não sobrava tempo para diversão. Todos os betelitas eram quase robotizados, pois era obrigatório assinar o "Voto de Obediência e Pobreza". O trabalho começava às 6h00 e se estendia até as 17h10, quando era servido o jantar. Às 5h00, todos deveriam estar despertos e prontos para a adoração matinal, que iniciava às 6h00, acompanhada do pequeno-almoço. Às 7h00 começava o trabalho de tradução, realizado por uma equipa composta por três membros:
Às 12h10 era servido o almoço, e às 13h00 iniciava-se o período da tarde, que terminava às 17h00. Em alguns dias, esse horário intercalava-se com atividades como o estudo da Sentinela, discurso público ou leitura bíblica semanal, realizadas às 18h00 e restritas à família de Betel. Havia duas datas comemorativas especiais:
Desqualificações e Desassociações na Casa de Deus – Betel Em Betel, desqualificações, desassociações e expulsões aconteciam frequentemente, muitas vezes por motivos injustos e alheios aos mandamentos de Deus. Um exemplo disso foi o meu primeiro companheiro de quarto, que foi desqualificado e expulso de Betel por usar um balde na casa de banho em vez do chuveiro. Um relatório negativo foi enviado pelo superintendente, acusando-o de desacato às ordens do Corpo Governante. Lembro-me de vê-lo chorar como uma criança; eu também chorei. Nós nos abraçamos, e ele se despediu. Outro caso envolveu o superintendente do departamento, que foi desqualificado e expulso porque costumava ser encontrado fora de horário na cozinha de Betel com a esposa de um missionário, cometendo impurezas. Eu frequentemente os via abraçados, o que me incomodava. Porém, no momento do julgamento, o missionário e sua esposa foram poupados e reenviados para a sua designação anterior no distrito onde serviam como missionários. Minha Saída de Betel Pelas experiências vividas, eu tinha o pressentimento de que seria o próximo a ser desqualificado. Estava preparado psicologicamente para encarar essa realidade e já havia refeito meus planos de vida para correr atrás dos meus sonhos que tinha antes de tornar-me Testemunha de Jeová – ser professor de inglês. Essa decisão foi motivada, em parte, pelas constantes ameaças que sofria do superintendente do lar, um brasileiro, devido à minha capacidade de identificar a qualidade de uma refeição antes de servi-la. Lembro-me de um caso em que rejeitei servir uma sopa que não estava bem preparada; todos que a consumiram ficaram enfermos com diarreia e vómitos no dia seguinte. Por essa razão, ele me ameaçou, dizendo que eu deveria consumir todas as refeições, caso contrário, influenciaria negativamente toda a família de Betel. O superintendente de tradução também parecia temer as minhas habilidades. Em todas as gravações de vídeos, áudios e dramas, eu desempenhava perfeitamente os papéis principais. Como seu adjunto, ele temia que eu acabasse ocupando seu lugar, embora essa nunca tenha sido a minha intenção. Meu único desejo era dar o meu melhor para Jeová. Os dois superintendentes uniram-se e, no final de um expediente, surpreenderam-me com uma acusação absurda. Alegaram que eu havia recebido uma transferência de crédito de dez meticais do celular do escritório para o meu número pessoal. Provei, com evidências, que a acusação era falsa. Primeiro, apenas o superintendente de tradução tinha acesso ao celular do escritório. Segundo, a data da suposta transferência coincidia com um período em que o meu número estava fora de serviço. Naquela época, meus pais, que não eram Testemunhas de Jeová, me ligavam diariamente, preocupados com os perigos da minha permanência no lar de tradução. Para evitar essa pressão constante, eu havia desligado o celular. Sem bases para sustentar minha desqualificação, eles suspenderam o julgamento, procurando uma maneira mais convincente de justificar a minha desassociação. Um mês depois, formaram uma nova comissão judicativa e me convocaram novamente, apresentando um relatório de duas páginas supostamente emitido pela operadora de telefonia móvel. O documento alegava que as transferências de crédito não ocorreram apenas uma vez, mas durante todo o período de um ano. Ainda assim, permaneci calmo e convidei os três anciãos a analisarmos juntos o relatório. Observamos os dias da semana e os horários das transferências. Com base nesse raciocínio, ficou claro que as supostas transferências eram feitas fora do expediente, às 23h, e nos finais de semana (sábados e domingos) – períodos em que ninguém estava no escritório, pois todos os tradutores estavam em suas designações congregacionais e no serviço de campo. Derrotados e envergonhados, os anciãos concluíram que um servo do tempo integral deveria ser livre de acusações. Ainda assim, fui expulso de Betel e desassociado. O anúncio da minha desassociação foi lido em todo o território onde a tradução tinha influência e também em distritos vizinhos. Isso foi feito com o intuito de silenciar a verdade e evitar que outros despertassem. Fui incentivado a recorrer ao segundo julgamento na minha congregação local, para que meus privilégios fossem restaurados. Porém, para mim, já era suficiente. Não queria mais ser manipulado. Decidi seguir em frente, longe da influência das Testemunhas de Jeová. Senti-me frustrado, abandonado e traído por uma organização à qual eu havia dedicado a minha doce mocidade. No entanto, estava decidido a recomeçar. Doei imóveis, literaturas e bens pessoais aos irmãos, pois fui obrigado pela comissão judicativa a abandonar Betel naquela mesma noite, com menos de 24 horas para me organizar. Acabei alugando um quarto de hotel para onde me dirigi, disposto a iniciar uma nova fase da minha vida. A Minha Vida Fora de Betel Minha vida fora de Betel foi um caos e uma completa destruição. Levei cinco anos para voltar a ser quem eu era antes: um jovem alegre, asseado, otimista e cheio de sonhos. Meu mundo desabou, e, para preencher o vazio que sentia, envolvi-me com álcool, cigarros e prostituição. Fiquei ressentido com Deus, parei de orar e de ler a Bíblia, e comecei a questionar se as Testemunhas de Jeová são realmente adoradores verdadeiros de Deus. Também passei a duvidar se os anciãos eram escolhidos por Deus para pastorear a congregação, visto que tantas orações foram feitas durante o meu julgamento, mas nenhuma decisão acertada foi tomada. Foi a partir desse momento que decidi retomar a leitura e pesquisar sobre as Testemunhas de Jeová utilizando outras fontes. Como Me Sinto Agora? Quando olho para trás, vejo uma vida superada e um futuro brilhante. Nunca é tarde para sonhar! Corri atrás dos meus sonhos e, hoje, sou professor de inglês numa escola pública. Reconciliar-me com Deus foi essencial, pois entendi que Ele não teve nada a ver com as atrocidades e o sofrimento que a organização me fez passar. Deus sempre esteve ao meu lado, ajudando-me a superar os traumas do passado, e continua me fortalecendo até hoje. Não me arrependo de ter abandonado a organização. Pelo contrário, lamento não ter tomado essa decisão antes. Recomendações Apelo aos jovens que pensam em servir no tempo integral para que não vejam isso como um "mar de rosas" ou o "melhor estilo de vida", como pregam o Corpo Governante e os anciãos da congregação. Antes de ingressarem no tempo integral, estudem e formem-se numa carreira profissional, porque é certo que não permanecerão no tempo integral para sempre. Podem ser dispensados por motivos de doença, velhice ou outras circunstâncias, e, fora do tempo integral, o Corpo Governante não cuidará de suas necessidades. Mizé Felizardo Manguessa Moçambique
2 Comentários
Cristovao Zacarias
19/1/2025 17:11:38
Fico feliz de Saber que mais Ex-Tjs em Moçambique estão a fazer a ganhar coragem e contar o que esta organização esconde. Espero um dia ter o contacto do Mizé.
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Kyamba
20/1/2025 14:24:39
Mizé parabéns pelo motivador testemunho.
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