Shelly Braieoux cresceu como uma Testemunha de Jeová, onde se tinha de confiar nos anciãos, obedecê-los e até mesmo temê-los. Contudo, ela reuniu coragem para ligar à polícia e reportar o abuso do seu pai. Genevieve Gannon conhece Shelly e a amiga de longa data que retornou aquela ligação. Era uma tarde banal de 1998, quando Constable Natalie Bennett chegou para o seu turno à esquadra de polícia de Brisbane e fez o que pensava ser uma chamada telefónica de rotina. A vítima de um abuso sexual no passado havia contactado a esquadra mais cedo, angustiada e ansiosa em falar com uma mulher polícia, mas como nenhuma estava disponível, foi-lhe dito que teria que esperar. Quando Natalie lhe ligou de volta, a mulher soava aterrorizada. Na sua voz baixa, ela explicou que o seu pai, um poderoso servo ministerial dentro das Testemunhas de Jeová, tinha-a brutalizado e agredido sexualmente quando era mais nova. Ela descreveu como o tinha denunciado aos anciãos da igreja, mas a sua pequena comunidade no longínquo norte tropical de Queensland tinha fechado fileiras em volta dele, ostracizando-a e feito com que ela se sentisse responsável pelo abuso. O seu nome era Shelly Braieoux e ela e Natalie estavam prestes a mudar a vida uma da outra. "Ela apenas estava a procurar conselho", diz Natalie ao The Weekly, refletindo sobre a conversa 20 anos mais tarde. "Eu expliquei que o que aconteceu com ela foi um crime." Shelly ouviu cuidadosamente, e então disse a Natalie que ela tinha que pensar acerca do que queria fazer a seguir. Por anos, ela tinha sido assombrada pela brutalidade do pai e pelo modo que a sua família e igreja a tinham ignorado. "Ela tinha ansiado por alguém ou alguma coisa que vindicasse a sua dor, mas ela estava petrificada." "Quando Natalie me disse que tinha sido um crime, eu fiquei chocada", diz Shelly, cujo olhar firme e sorriso caloroso revelam muito pouco da jovem tímida e traumatizada que precisava reunir toda a sua força para fazer essa ligação todos esses anos atrás. A sua educação enclausurada numa casa rígida a enchera de medo do mundo em geral. Ela tinha sido segregada dos de fora, ou pessoas "mundanas", e foi-lhe dito que a polícia eram servos de Satanás. Reportar algo à polícia era pecar contra Deus. O pai de Shelly "acreditava que a polícia era má e servia Satanás – era o que nos era ensinado. Essa história, a crença, a religião, a doutrinação – todos esses pontos de vista estavam na minha mente enquanto eu a contatava", diz Shelly, agora com 46, ao The Weekly. "Você apanha pessoas que ligam e apenas querem falar sobre o que ocorreu mas não querem fazer uma queixa", diz Natalie. Mas o profundo senso de justiça de Shelly deu-lhe a coragem de voltar a ligar. A resposta compassiva de Natalie mudou tudo para Shelly, para sempre. "Eu fiquei chocada. Eu não sabia que merecia ser protegida porque fui tão mal-tratada", explica Shelly. Mas à medida que a mulher falava, ela rapidamente percebeu que havia sido enganada acerca do mundo além da igreja. "Aquilo terá sido o princípio de eu quebrar a doutrinação", diz ela. Uma amizade desenvolveu-se ao longo de muitos anos, incluindo três julgamentos para processar o pai de Shelly, mas Shelly pôde perceber desde a primeira interacção que Constable Natalie Bennett era uma pessoa especial. "Desde o momento em que ela começou a falar comigo, eu simplesmente soube", diz Shelly. "A sua voz, a compaixão – ela soava tão sincera – o que me fez sentir segura em dizer-lhe mais acerca do meu abuso." Shelly é agora procuradora policial ela mesma, e Natalie estava lá, orgulhosamente olhando quando Shelly se formou na faculdade de direito. Um crime horrível as juntou, mas uma paixão partilhada por justiça as tornou amigas. Um mundo aparte Quando Shelly tinha 10, a sua família se mudou para Mareeba no Far North Queensland. A pequena comunidade é localizada na área de comida tropical que produz cana-de-açúcar, mangas, ananases, abacates e lichias a mais de 1700km a norte de Brisbane. O seu alegre cartaz de boas-vindas ostenta 300 dias de sol por ano e declara que Mareeba é "um ótimo sítio para se viver!" Mas para Shelly, o isolamento provou-se perigoso. A sua igreja era um pequeno, insular grupo dentro da cidade e estava organizada dentro de uma hierarquia que reforçava a retidão e obediência. "Na Igreja das Testemunhas de Jeová, os homens estão no topo da hierarquia e detêm toda a autoridade junto de Jeová. O homem é o cabeça do lar e sua esposa e filhos têm que obedecer a ele e refrear-se de questionar a sua autoridade", disse Shelly numa declaração à Comissão Real Australiana para Respostas Institucionais ao Abuso Sexual Infantil. Alguns anos após a família se mudar para a cidade, o pai de Shelly foi designado servo ministerial da congregação Mareeba das Testemunhas de Jeová. A sua proeminência, diz ela, protegeu-o de acusação. "O meu pai era uma rígida e altamente considerada Testemunha de Jeová", contou Shelly à Comissão Real. "As Testemunhas de Jeová acreditam que quando um homem é designado como ancião ou servo ministerial, ele é designado pelo Espírito Santo de Deus para julgar outros." O seu pai levou o seu papel na igreja muito a sério, frequentemente citando as Escrituras em família. Onde muitos adolescentes colavam posters de suas paixões nas paredes, o quarto de Shelly tinha coladas passagens bíblicas. O seu pai removeu a porta do seu quarto, eliminando toda a privacidade na casa, onde até mesmo a porta do WC não fechava em condições. Pelo menos três vezes por semana, a Shelly e seus irmãos era requerido que atendessem a reuniões no Salão do Reino, onde eram ensinados pelos anciãos como manter a congregação limpa e reta. A Shelly não era permitida a associação com ninguém de fora da igreja, e embora assistisse à escola regular, não lhe era permitido juntar-se em atividades extra-curriculares. Nem assistia a aulas de educação sexual, porque a igreja via isto como responsabilidade parental. Quando ela terminou o 10º ano, os seus pais a tiraram da escola para que se pudesse focar na pregação. O pai de Shelly criticava-a severa e frequentemente, dizendo que precisava de mais treino para ser obediente. "Não importava o quanto me esforçava, eu nunca era boa o suficiente", diz ela. Publicamente, o seu pai aparentava ser um homem espiritual, mas em privado ele tinha pavio curto e era violento. Ele batia em Shelly com um cinto de couro até que sua carne estivesse dorida com vergões. E enquanto amadurecia, o seu comportamento em relação a ela tornou-se cada vez mais sinistro. Ele dizia a Shelly que ela era "sexy" e quando ela estava no 7º ano, deu-lhe um beijo desleixado nos lábios que a fez sentir-se desconfortável. Então, em 1988, a mãe de Shelly levou seus irmãos à Expo em Brisbane, deixando Shelly sozinha com o seu pai. Shelly pensou que se ela ficasse em casa e cozinhasse para ele, ela talvez ganhasse a sua aprovação. "Eu queria que ele se orgulhasse de mim, me aceitasse e reconhecesse que eu não era má ou iníqua", disse ela. Em vez disso, ele repetidamente a violentou sexualmente. Quando a mãe de Shelly voltou, o seu pai disse a toda a gente que Shelly era "doente mental" e "maluca" e que ela "serviu o Diabo". Shelly sabia que ela podia e deveria reportar o seu pai aos anciãos mas estava aterrorizada. "Se eu quebrar as suas regras, ele açoitar-me-á", diz ela. O seu pai ameaçou-a expulsá-la de casa caso ela alguma vez falasse com alguém. Ela queria deixar a igreja mas não queria ser 'desassociada', que é o método das Testemunhas de Jeová de expulsar transgressores que não se arrependeram. "Eu não queria ser ostracizada pelas únicas pessoas que eu conhecia, assim como viver com medo de Jeová", diz ela. Em 1989, o pai de Shelly deixou a família e mudou-se com outra mulher, deixando-a livre para reportar o seu comportamento. Shelly falou com a mulher de um ancião, que era também um amigo de seu pai, mas o ancião disse que não poderia falar com Shelly sem o seu pai estando presente. Desesperada, Shelly usou um telefone pago para ligar para outro ancião, que também disse que o seu pai tinha que estar presente para qualquer conversa. "Tudo o que posso lembrar depois disso foi chorar", diz ela. Em meados de 1989, Shelly confidenciou com um amigo, que acreditava nela e ajudou a arranjar uma conversa com os anciãos. Eles realizaram uma reunião de comissão para investigar, mas permitiram que o seu pai estivesse na sala durante os procedimentos. Após ela ter descrito os abusos, eles perguntaram-lhe questões tais como esta: "você gostou?". Então eles disseram que ela tinha que confrontar o seu pai acerca das alegações. "Eu senti-me sem valor, desamparada e embaraçada", diz ela. No final, o pai de Shelly foi desassociado, mas depois um dos anciãos confidenciou a Shelly que ele foi desassociado por causa de "conduta desenfreada" – não por causa do abuso de sua filha. Quando Shelly perguntou porquê, foi-lhe dito que era por causa da regra da igreja que requeria duas ou mais testemunhas para um evento. "Eu fiquei mortificada e devastada", disse Shelly à Comissão Real. "Parecia tão errado que o abuso do meu pai afetou-me tanto e, contudo, nem sequer se qualificava como algo errado aos olhos das Testemunhas de Jeová, que professam agir com a autoridade de Jeová e do Espírito Santo, que é considerada como estando acima da lei Australiana." Ela tornou-se suicida. Quando ela confessou a sua tentativa de suicídio aos anciãos, ela foi castigada porque a sua tentativa de suicídio é vista como uma séria transgressão. Mas Shelly lutou pelo seu caminho para a liberdade. Ela eventualmente casou-se com o amigo que a tinha apoiado e juntos mudaram-se para longe da igreja. Shelly, agora uma mãe solteira com quatro filhos, mudou o seu nome mas levou quase uma década antes de ela juntar a coragem para fazer aquela chamada para a polícia. "Naquele estágio, eu lutava com a capacidade de confiar", diz ela. Apenas foi necessário uma conversa com Natalie para que a vida de Shelly mudasse de rumo. Uma vez ela tendo processado o que Natalie lhe havia dito, ela sabia que queria acusar seu pai. Natalie avisou-a de que as acusações de abuso sexual histórico são complicadas. Seria a palavra de Shelly contra a do pai. E embora Shelly tenha explicado que o pai também abusou das suas irmãs, Natalie sabia que isso não necessariamente ajudaria em tribunal. Natalie sentiu-se protetora. Ela viu que Shelly estava lutando com tudo o que lhe tinha acontecido, e estava bem a par de quão cruel o processo seria. "Eu sabia, através de acompanhar os processos de outros, que havia ocasiões onde o acusado é considerado inocente e é angustiante", diz Natalie. Natalie explicou que Shelly teria que ir a uma esquadra de polícia local em Townsville, onde ela vivia na altura, e preencher uma queixa. "Shelly disse: 'Eu não quero falar com mais ninguém, eu quero falar consigo', relembra Natalie. Era pouco ortodoxo, mas Natalie pediu permissão para fazer a viagem de 1300 km de Brisbane a Townsville para receber o depoimento de Shelly. O seu chefe e mentor, Sargento Stewart Kerlin, apoiou-a. "Stewie disse-me: 'Se eu posso dar-lhe algum conselho neste trabalho, é esteja com eles até ao fim. Se você acusar alguém, você continua.' E foi isso que eu fiz", diz Natalie. Durante dois dias, Natalie orientou Shelly no seu depoimento. "Foi emocional", relembra Natalie. "Eu senti por ela como mulher. Eu senti por ela como ser humano." No ano em que Shelly foi abusada, 1988, foi o ano em que Natalie se juntou às forças policiais. "Tudo o que eu podia pensar era: 'Aqui estava esta jovem rapariga sendo sujeita a um crime horrível, enquanto eu estava lá fora no mundo tendo uma boa vida'", diz ela. "Eu estava muito zangada." Shelly estava determinada a que fosse feita justiça. À medida que falava com Natalie, o completo horror do que havia ocorrido em Mareeba tornou-se aparente. Quando os anciãos da congregação recusaram as acusações de Shelly, "senti-me apedrejada por eles", diz Shelly. Foi-lhe feito sentir que ela estava errada. Ela foi acusada de mentir. "Antes do contato com a polícia de Queensland, diz Shelly, "eu procurei repetidamente ajuda de várias pessoas", e ela preocupou-se "sobre o risco de dano a outras crianças, depois do meu pai abusar de mim e de minhas irmãs". "Eu senti-me obrigada a avisar as pessoas acerca do risco de dano, porque elas poderiam inadvertidamente expor seus filhos enquanto participavam em algo que parecia ser uma inocente atividade religiosa. Isso estava por detrás do meu subjacente, desejo ardente de ir à polícia. Eu tentei primeiro dentro da religião." Um julgamento exaustivo Shelly teve que aguentar três julgamentos. Ela foi colocada na posição de testemunha e submetida a interrogatório. A pressão e trauma foram quase esmagadores. "Eu senti-me como uma concha", diz ela. Mas ela aguentou firme. "Eu entrei naquele pensamento, mesmo que eu não ganhe, eu estou a expô-lo por aquilo que ele é e mostrando às minhas pequenas irmãs que isto é um crime. Não pode ser aceite. Eu estava tentando mostrar também àqueles anciãos, que isto é um crime." Natalie ficou com Shelly em toda a etapa, as palavra de seu mentor Stewart Kerlin (que foi morto tragicamente em serviço em 2006) ecoando na sua mente. Você segue adiante com um trabalho. Houve alivio e exaltação em 2004, quando o júri entregou o veredicto de culpado e o pai de Shelly foi sentenciado a três anos de prisão num total de um por cada episódio de violação, tentativa de violação e abuso sexual e por quatro acusações de assalto indecente. "Tudo se deveu a ela", diz Natalie de Shelly. "Ela nunca vacilou. Como resultado, ele foi considerado culpado. Ele cumpriu o tempo." Depois do julgamento ter terminado, Shelly sentiu-se compelida a lutar por outras vítimas. Ela fez um requerimento à Comissão Real Australiana para Respostas Institucionais sobre Abuso Sexual Infantil e, apesar de ter sido tirada do 10º ano, iniciou uma licenciatura em direito. Quando ela estava prestes a se formar, ela ligou a Natalie e perguntou-lhe se ela poderia ir à sua cerimónia. Natalie, é claro, orgulhosamente disse que sim. "Eu não compreendi, até chegar lá, a verdadeira magnitude do meu impacto", diz Natalie. "Eu juntei-me a este trabalho em 1988 porque eu queria ajudar pessoas e quando ela lhe diz na sua formatura que ela fez isso por causa de ter acreditado nela, isso é mesmo poderoso." "Eu considero-a o meu anjo", diz Shelly. "Eu definitivamente não teria falado com mais ninguém. Eu estarei grata até ao dia em que morrer e provavelmente depois." Natalie diz que o seu encontro com Shelly, o qual se tornou uma amizade de uma vida, é um ponto alto na carreira. Ela ri-se, relembrando a primeira vez que Shelly falou com ela depois do julgamento ter terminado. "Ela ligou-me e disse: 'Oh, olá! É Shelly, você lembra-se de mim?'" Natalie ri-se calorosamente. "Como poderia esquecer? Você é a mulher que me inspirou, que me fez continuar, 'Wow'. Artigo original: The Australian Women's Weekly, Outubro 2019
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