Querida mãezinha… Enquanto escrevo estas palavras, lágrimas escorrem-me pela face. Nunca pensei que um dia teria que escrever uma carta tão dolorosa e tão sentida como esta que agora escrevo. Mas sinto que devo escrever-lhe o que sinto e que está apertando meu peito e me sufoca a garganta. É um grito mudo de revolta aquilo que sinto, ao perceber como uma fé, uma crença, uma religião, pode separar algo tão divino e precioso como é a relação de uma mãe com sua filha. Parece que foi ontem, que sentada ao seu colo ouvia falar do amor de Deus pelo seu povo. Um amor descrito na Bíblia como o amor de uma mãe por seus filhos. Um amor incondicional e profundo, capaz de superar até mesmo os atos mais horrendos e cruéis. Fui criada por você a acreditar que o nosso amor é eterno, que nada o poderia quebrar ou dissolver. Que os laços que nos unem, formados a partir do arranjo divino da família apenas poderiam ser terminados com a morte – e mesmo essa – seria uma interrupção temporária, pois a ressurreição de novo nos voltaria a ter nos braços uma da outra. Fui criada a acreditar que a religião em que estava e que acreditava de modo absoluto, estava acima de todas as outras na forma de pôr em prática o amor. Quão tola era! Quão ingénua fui! Não via os sinais que me eram passados com frequência, quando via outros serem expulsos da religião. Quando via a cara de horror, choque e tristeza dos irmãos e irmãs na congregação, como se a pessoa cujo nome foi mencionado tivesse morrido – e de facto morreu – para eles. Confesso que eu também pratiquei esse “amor”… um amor condicional que nos leva a olhar o outro em função da sua crença e da pertença ao mesmo “clube”. Afinal, “se não estás connosco, estás contra nós” era essa a mensagem inculcada vez após vez nas reuniões. Como se o discordar de alguma coisa na religião ou o praticar o pecado tornasse a pessoa indigna de ser um ser humano de pleno direito, alguém que continua a merecer amor, respeito e consideração. E por coisas muitas vezes pequenas! Um cigarro, uma festa de aniversário, coisas que nem sequer vêm mencionadas na Bíblia! Achava, como tu agora achas, que a justiça divina estava sendo servida na devida proporção do pecado. Que afinal, a culpa do tratamento frio e ostracizador era da pessoa, não nosso. Percebo agora como fui cruel! Por vezes, é preciso passar pelo mesmo para sentirmos verdadeiramente o que é estar no papel do outro. Muitas vezes só assim percebemos como o homem é mesquinho e cruel, usando Deus e Sua Palavra como arma contra aqueles que discordam das suas interpretações e argumentos falaciosos. Desde o dia em que fui desassociada que deixaste de falar comigo, não totalmente no início, mas não tardou muito a receber de ti a carta que revelava os teus sentimentos com a declaração final: “Amo-te muito, mas amo ainda mais o meu Deus Jeová.” Nessa carta descreveste como te desiludi, como te magoei e como te sentiste enganada por eu “ter virado as costas a Jeová”. Não mãe, não te desiludi. Eu própria me desiludi. Eu própria senti-me magoada e enganada. Não por ti, porque tudo o que fizeste ao me criares nesta religião foi por amor, acreditando que tudo o que fazias era o mais acertado. Eu própria me desiludi, magoei e enganei ao perceber que muito do que me foi ensinado e imposto não passava de uma mentira. Senti-me manipulada por homens que se colocam no lugar de Cristo e de Deus, pretendendo determinar o que é certo e errado, mesmo que isso não venha expresso na Bíblia. Senti que a minha vida foi uma farsa até agora, uma peça de teatro em que fui levada a representar um papel que não me cabia representar e que nunca pedi para representar. É triste ter que reconhecer que não consegui representar este papel até ao fim, como muitos conseguem fazer. Mas sabes mãe… não consigo ser hipócrita. Não consigo viver uma vida fingindo acreditar em mentiras e ensinos de homens como se fossem de Deus. Simplesmente não consigo! Eu sei que tu acreditas, que ainda acreditas. Tenho que respeitar. Mas o que não posso respeitar é quando esta religião me tenta roubar aquilo que deveria ser meu por direito: a minha mãe! Aquela que me deu a vida e que deveria demonstrar por mim amor incondicional, respeitando as minhas escolhas – que não necessariamente tem de ser a sua. Lembraste mãe, como tu mesma saíste de outra religião? Como te trataram os teus pais? Será que eles não respeitaram a tua escolha, por mais que isso lhes custasse? O amor deles os levou a respeitar a tua escolha, mas hoje não tens a capacidade de fazer o mesmo comigo. Eu sei que isso se deve àquilo que te dizem na religião. Eu sei que a formatação lá é enorme e tudo é posto de modo a levar-te a cortar laços comigo e por consequência, com os teus netos. Sim, porque se tu não queres falar mais comigo, se não mais me reconheces como filha, porque haveriam os meus filhos te reconhecer como avó? Afinal, é só para o que te interessa? Só quero que te lembres que no dia em que precisares, ninguém, repito… ninguém da religião vai fazer alguma coisa por ti. Se o fizer, será algo temporário porque rapidamente vão perceber que é uma carga difícil de ter e afinal… cada um tem a sua família para cuidar. Nessa altura, os irmãos que hoje te ensinam a cortar laços comigo e deixar de me falar, vão dizer que eu é que tenho a responsabilidade de cuidar de ti. Nessa altura, dar-te-ão um livre-passe para que possas ficar debaixo dos meus cuidados, debaixo do meu teto. Nessa altura, já poderás comer comigo e ter uma relação normal de mãe e filha. Mas nessa altura, todo o tempo que agora desperdiças terá sido “queimado”, terá sido preenchido com o vazio criado pela nossa separação. E esse tempo não volta a atrás. É por isso, mãe, que não mais suporto as declarações hipócritas desta religião dizendo que “o amor nunca falha”. O que mais falha nesta religião é o amor – o verdadeiro amor! Falha porque o amor praticado dentro deste grupo é condicional, mecânico e interesseiro. É um amor fingido que apenas tenta refletir uma fracção do que o verdadeiro amor é. É triste perceber como quem nos deu a vida prefira sacrificar o verdadeiro amor em prol de um amor fingido. De um “amor” interesseiro que visa a auto-preservação no dia em que Deus supostamente provocará um holocausto mundial – algo tão ou mais horrível que o Inferno de Fogo que dizes ser um ensino falso e de origem pagã. Não vês, minha mãe, que estás a desperdiçar os melhores anos da tua vida, em que ainda tens saúde e vitalidade, em prol de uma empresa multi-milionária que te usa como mão-de-obra barata para divulgar o seu “produto”. No dia em que já não precisar de ti, ou melhor, no dia em que já não conseguires produzir o necessário para seres considerada de utilidade para ela, serás descartada como lixo. Terás perdido anos da tua vida e da tua família para nada. Deus não precisa disso mãe. Não precisa que abdiques de ter-me na tua vida para seres aceite por ele. Seria um Deus mesquinho se fosse assim. Seria um Deus cruel! Não acredito nesse Deus! Este deus cruel, mesquinho e que separa famílias é um falso deus, construído à imagem dos líderes religiosos que controlam esta corporação religiosa. Será que não vês isso! O Deus de Cristo “é amor”, não ódio e preconceito. Ao seguires este falso deus, tu também te tornas à sua imagem e semelhança, renunciando à tua família em prol de um desejo egoísta de salvação. E como serás salva, se demonstras falta de amor verdadeiro, mãe? Não foi o apóstolo João que disse que se ‘não amarmos aqueles a quem vemos, como poderíamos amar Aquele a quem não vemos’? Espero que um dia mudes de ideias a respeito deste tratamento cruel e desumano e reconheças que erraste. Que ainda tenhas tempo de o fazer com qualidade de vida e discernimento, pois a vida passa tão rápido minha mãe. Tão rápido! Não sei se leste tudo até ao fim. Mas se o fizeste, quero que saibas que te amo muito! A ti e ao pai, porque eu sei que ele também sofre com esta separação mas não o consegue expressar. Estarei sempre aqui para ti, porque ao contrário de ti, o meu amor é incondicional! Desta filha que te ama e que sente saudades!* *Esta carta é fictícia mas é baseada em inúmeras experiências de ex-Testemunhas de Jeová que passam pela situação do corte de relações familiares em virtude da sua saída da seita. Se for um pai ou mãe que esteja no papel de cortar relações com seus filhos, espero que esta carta o faça refletir. Antes que seja tarde demais.
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